anatomia do silêncio

All Rights Reserved © 2014 Samuel Pereira Pinto


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fotografia

Mergulhava o pescador de imagens
a cana nas profundezas da paisagem...

Pensava poder encontrar
na limpidez de um gesto fortuito
uma verdade maior,
que os seus olhos peregrinos
não podiam alcançar.

Pensava poder
salvar através de um instante
o tempo da sua condição
e com ele escapar ao destino,
fugir...
/ fotografia
/ telepatia
/ memórias do promontório
/ diário de um naufrágio
/ tarde
/ cipreste
/ liberdade
/ sede
/ museu do amor
/ somatologia da mágoa
 
 
 
telepatia

Coloca o meu caderno de apontamentos
junto ao teu na mala...

Os nossos pensamentos
de mãos dadas!

Podemos, agora,
descansar um do outro?
memórias do promontório

nunca o mar esteve perto
de alcançar o promontório
e contudo,
lá estavam naquela tarde,
os teus olhos de água
fitando o horizonte
inundando de sal
a minha pele enxuta,
abalando de baixo,
o alto de uma outrora
certeza.
diário de um naufrágio

a minha voz não teve, por certo,
o dom de te resgatar do oceano que és.
de te guiar a terra firme, de humanidade.
muito menos, de te mostrar um tecto,
te emprestar asas, te dar um chão.

e, como queria que visses
as aves à margem do ensejo
cruzando soberanas o olhar,
fitando a utopia, mastigando já
o azul de um sempre novo céu.

Naufragas-te algures dentro de ti.
Perdi-te algures para o silêncio.
Perdeste-te algures em ……………………
 
 
tarde

Agora é já tarde para dizermos “depois”.
Arrastámos o diálogo calçada fora
e as horas em levianos desfechos a dois.
Devorámos as palavras pela pronúncia:
os verbos contundentes no calor do atrito
os nomes de afecto em ímpetos reencontros,
e foram tantos, “meu amor”.

Mais importante, por ventura,
consumimos os silêncios,
todas as formas humanas
que um silêncio pode comportar.
Gastámos os abraços por força da dor,
os lábios na sede de um beijo,
o olhar no vício de sempre nos olharmos.

E, os dois corpos que somos
já não chegam para preencher o vazio deste espaço oco
para ocultar a inevitável esquadria das suas quatro paredes,
a circunstância impermeável do solo onde me deito,
a dimensão exígua do pé-direito que não nos deixa medrar.

Sim, esgotámos o diálogo
e nada nos resta senão a memória, meu amor,
da tua boca segurando o sol,
do tempo em que as promessas eram luz
quando a tua pele era, ainda,
terra virgem esperando calor.

Hoje campo estéril,
por vezes calado, por certo cansado,
nas labaredas da culpa indomável arde.
É tarde! Já tarde para dizermos “depois”.
 
 
cipreste

onde o vento sopra
as árvores falam,
mais alto.
detém-se a garganta…
o engenho sonda
o dialeto da terra.
como dói 
o silêncio do mundo!
 
liberdade

hoje,
não trazes na algibeira
uma palavra,
para mim.

trazes à lapela
as flores de abril
mas nenhum som
que te liberte
nenhum cravo de esperança,
nenhuma palavra,
para mim.

trazes ao peito
o direito, insígnias…
reclamas uma verdade maior:
o indivíduo, a diferença, a sua expressão…
mas nenhuma palavra de ordem
contra os muros da tristeza
nenhuma palavra,
para mim.

a verdade!
trazes certa nos bolsos
a verdade. e,
certezas são pedras.

trazes os bolsos
cheios de pedras.
por isso,
te arrastas pela vida.
és refém…

não trazes na algibeira,
palavras para os homens,
uma voz que te liberte,
uma palavra,
para mim.
 
sede

dantes
havia sempre palavras,
uma boca de água,
sede ao largo e nomes,
muitos nomes para te molhar.

agora,
um caderno de palavras,
certezas em linhas,
conjeturas de sede, e letras…
demasiadas para contar.

obesos,
ganhamos o presente
queimando em silêncio
sons do passado e,
temos um caderno
inteiro para queimar!
(pensamos à lareira)

e eis senão que,
sentados ao lume,
por entre a opulência
da escrita,
uma réstia de página
deixa saudades de fome
nos corpos que morrem
sedentos de chuva
os lábios de novo
se agitam.  
 
museu do amor

com o tempo
escrevemos o amor.

letra a letra, edificámos
um templo de promessas.
                                               
selados numa caixa guardámos                                                     
os abraços, as mãos, um beijo - eterno.

escrevemos o amor.

com tempo erguemos
uma muralha de silêncios.

calados exumamos os afetos por cumprir:  
“os abraços”, “as mãos”, “o beijo eterno” velho de ontem…

pedras. só temos pedras
para atirar…  um ao outro.

 
somatologia da mágoa

nascem rios de dor
da espessura de silêncios.
o bulício dos dias
permanece fresco
sobre os olhos nublados.
também sobre a pele
numa lágrima
o sabor do sal
da vida.
 
suprematismo

existem palavras
da largura de silêncios.
existem poemas por escrever
por força da escrita,
das palavras.
esses poemas apenas
te poderei contar pelo olhar.
duram o tempo                                       
de um sorriso.
 
carta de amor

escrevo-te para não te dizer que te amo.
não para constatar que todo o amor é covarde,
mas para o gravar a fogo no granito dos amantes.

AMO-TE em letras garrafais pintadas a spray
na fachada principal de um edifício histórico.
sou um confesso marginal sem arte
graffitando palavras parvas sobre um poema de Pessoa,
esperando impacientemente a evidência do meu acto,
contribuindo expectantemente para a perpetração de um crime:
o “indiscutivelmente ridículo”.

porque todo o amor, gratuito e altruísta,
se alimenta de coragem alheia
todos os amantes devem ser
criminosos tontos de caneta em punho
e todas as cartas de amor,
impreterivelmente, ridículas.
 
requiem

não.
ninguém sabe,
nem tu,
que quando passeamos
junto à foz,
trago pela mão
a saudade.

nem eu,
se esses lábios que
de quando em quando
se encontram                                           
são ainda um beijo,
ou exéquias
que trocamos.

não sei se é
o nosso amor,
o primeiro,
que ai está todo…                            
prostrado.
por ser, ainda,                                                                 
impoluto.

talvez seja, verdade!

talvez possamos
chegar tarde
ao nosso próprio
funeral…
e contudo,
na morte como na vida,
sei, andaremos sempre juntos.

 
contas de sumir

vendeste a alma ao diabo,
vendi o corpo para pagar promessas.

arranquei os cabelos pela angústia,
as unhas em intermináveis esperas.
amputei os dedos, depois as mãos, os braços…
deixei as pernas no sofá.

troquei a vontade por miúdos.

fiz das tripas coração,
do vício uma sentença.

desfiz a língua em argumentos,
dividi as frases em palavras,
vocábulos, soluços e silêncio.

em breve, nada de mim restará para dar de comer ao teu amor.
em breve, nada restará.
em breve.

 
elogio da pele

hoje, serei todo mãos!
darei descanso ao olhar
para ver somente
com os olhos da pele.
a boca não se abrirá
senão para lamber os lábios,
trocar um beijo.
respeito!
o silêncio é sagrado,
as palavras heresia.
 
epílogo

o silêncio…
sempre o silêncio.
estava lá também
para o enterro do nosso amor,
como no princípio -
o instante sagrado em que selamos
com os lábios o destino.
não era, contudo, a palavra,
pura e imaculada.     
tão pouco, a reverência
de sabermos os nossos corpos infinitos,
recém-acordados de uma tina de água.
mas, antes, o som abafado,                                  
a voz rumorosa da ausência,
um fechar de olhos e o sentido frémito
de um chegado  
fim.
 
pausa para escutar o silêncio

manhã de sol:
tronco a descoberto
despido de preconceitos.
esticado na grama
escuta o silêncio -
o rumor do  mundo
movendo-se por dentro…
o peito que diáfano             
se abre ao ar, 
a alma que respira
como quem sente,
e apenas sente.
o presente.
 
corpo de mulher

Corpo: de mulher, todo ele sal
Odor: de mar, por navegar
Olhos: que se afundam em abismos
Olhos que desaguam em novos olhos, de carne                                         
Pele: um olhar canibal

As mãos: serei todo ouvidos, prometo   
A boca: não se abrirá senão para lamber o sal
No silêncio tudo é permitido
Quebra o mar ao largo do areal.
 
manhã de abril

manhã de abril:
democrático, o sol pousa
sobre a razão dos homens.
do tecto da consciência
avistamos límpido o altar do amor
- uma catedral branca.

não sou grande, mas sou maior
porque sou igual e te tenho a ti,
longe dos muros negros da censura.

alegria!

alegria de te encontrar num lugar
tão perdido como o mundo.
alegria de ter medo de te perder
para algo tão hipotético como a vida.
vontade de te tomar nos braços
sob o exame de todos.

e é uma batalha que travamos
por cada centímetro de pele.
corpo a corpo, de mãos dadas,
pelos antigos caminhos do mundo,
cerrados os olhos, selados os lábios,
libertamo-nos da ditadura
das palavras.
/ suprematismo
/ carta de amor
/ requiem
/ contas de sumir
/ elogio da pele
/ epílogo
/ pausa para escutar o silêncio
/ corpo de mulher
/ manhã de abril
/ voz do amor
/ reflexo de um amor passado
/ servidão
/ abre as mãos
 
voz do amor

cerrados os olhos,
selados os lábios,
enleados os sentidos,                                                                             
achámo-nos absortos    
diante da evidência do paraíso. 
como Adão e Eva despidos                                             
ante a descoberta da maçã             
da linguagem.

a voz exacta do amor é o silêncio
e a seta que trespassa
os nossos corações no ardor
de um beijo proibido.
 
reflexo de um amor passado

leva, leva a memória
das nossas mãos juntas
pelo passeio dos dias,
os nossos nomes gravados
lado a lado, na areia branca;
dois corpos dançando
na cadência do glauco mar;
como um beijo as bocas                                    
exultando o silêncio.

flor aberta à manhã intacta,
olhar que sereno descobre a luz,
um círculo que se desenha perfeito,
a nossa imagem parada na água        
- um aperto no peito.
 
servidão

desgraça de te achar
num lugar tão débil
como a vida.

servidão de te querer
com estes olhos de carne,
lascivos e mortalmente fracos,
entumecidos do ego e,
não raras vezes, manchados
do pecado.

é dor ou gáudio,
que sinto ao escrever:
ainda que impuro, eivado,
doente te amo fendido
pela metade.


tristeza, quase sempre,
de sermos os dois
no cativeiro do corpo.
onde tudo é físico e protético,
efémero e somático.

uma jura!

juro, por ti inventarei
uma língua nova, maior.
livre do constrangimento das palavras,
alta como silêncio dos sons
perenes.







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abre as mãos

Toma.
Abre as mãos. É teu!
Este poema nunca me pertenceu.

Nunca em mim dourou o sol
que não fosse pelo dom.
Nunca em mim se fez palavra
que não fosse pela afinidade
Tudo o que escrevi me soletraste primeiro.
E, se algum dia vi a luz foi pela porta dos teus olhos.
Se pelo caminho me encontrei foi no aperto do teu corpo.
Se conheci o sal da vida - a via do amor,
foi porque te amei e doeu, e eu vivi.

Desenhei-me do tamanho do teu mundo
Usei as cores da nossa paixão
Fiz da tua imagem o meu esboço,
mulher, modelo, musa, verso, canção…

Toma.
Revela protagonista o rosto.
Abre segura as mãos. É teu!
Este poema nunca me pertenceu.